Releitura crítica do espaço prisional sob a ótica abolicionista

O presente ensaio busca convocar o campo da Arquitetura e Urbanismo à necessidade de refletir sobre a prisão. Ao pautar as crises urbanas, dificilmente se problematiza a existência dos espaços de encarceramento como parte – ou até mesmo geradora – das questões das cidades contemporâneas. No entanto, é posta aqui a premissa de que são, na verdade, centrais.

Considerando que o campo se propõe a debater e investigar a produção do espaço, parece contraditória a limitada atuação sobre a prisão. Por serem consideradas “humanizadas”, as unidades de segurança do Norte Global são comumente usadas como referência projetual de espaço penitenciário, por exemplo. No entanto, é esta mesma circunstância que reforça a problemática apontada: se o padrão ideal é aquilo que é humanizado, naturaliza-se, então, o fato de que presos vivem atualmente em condições subumanas.

Questionamos, portanto, o motivo do abandono dessas concepções sobre quais se constitui o campo quando se olha para esse tipo de programa. No cenário brasileiro quando a intervenção não é nula, ela parte de um mínimo estabelecido pela Lei de Execução Penal que já se provou insuficiente e, principalmente, não condizente com a velocidade em que se encarcera, gerando superlotação.

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Penitenciária Mas d’Enric / AiB estudi d’arquitectes + Estudi PSP Arquitectura. Foto © José Hevia

As forças hegemônicas de constituição da cidade

A cidade, por sua vez, pode ser tida como uma somatória de experiências e discursos que se materializam através de dinâmicas interpessoais e relações de forças. Dessa forma, é possível deduzir como se constroem essas somatórias se voltarmos nossa atenção à vivência do espaço urbano, que se mostra bastante clara nas instâncias de manutenção do status quo e do controle dos corpos.

A cidade opera, mediante instituições que servem de instrumento para a supervisão das dinâmicas da sociedade, uma vez que é processo e resultado das atividades capitalistas nas relações sociais. Entre as esferas públicas de restrição, encontra-se o Sistema Penal e seus aparatos de repressão, como a prisão. O encarceramento é dado como solução para inúmeros problemas sociais os quais não derivam diretamente da criminalidade, como desigualdade social, desemprego, falta de moradia e o uso de drogas (DAVIS, 2019). Esta solução como política de Estado, porém, só passou a ser empregada a partir do século XVIII na Europa, e XIX nos Estados Unidos (DAVIS, 2019) em contrapartida às penas capitais ou físicas. O encarceramento é, portanto, a atualização do sistema. 

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Parentes de presos aguardam notícias em frente a Cadeia Pública de Manaus. Marcelo Camargo/ABr, licença CC BY-NC-SA 2.0

No imaginário social, as reformas penitenciárias apresentam-se sempre como humanistas e inovadoras, mas estão, fatalmente, relacionadas com as transformações nos modos de produção. Isso é observável na própria substituição das barbáries retroativas do Antigo Regime pela pena de prisão, na medida em que ela aparece atrelada ao que se realizava nas Casas de Trabalho na Inglaterra no século XVIII.

Essas instituições foram as primeiras a tentar incorporar a função tripla do trabalho, a qual absorve uma dimensão produtiva, simbólica e disciplinar (FOUCAULT, 1997). Nelas as camadas mais baixas seriam colocadas no ciclo de produção em troca de uma cama, fazendo com que os preceitos de tempo, lucro, trabalho e moradia fossem assimilados a fim de estabelecer a ideologia do capitalismo de produção.

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Albergue londrino para desabrigados em 1906. The Spokane Press/Wikimedia Commons. Imagem de domínio público

Não coincidentemente, a prisão como forma de punição se coloca em um momento histórico em que o trabalho e produção são destituídos da propriedade, implicando em uma monetarização do tempo. Analisando os ciclos econômicos na história, temos que a rigidez das sanções penais – e, por consequência, do encarceramento – é acompanhada quase sempre do aumento exponencial do desemprego.

No geral, esse modo de operar em que a prisão se estabeleceu constitui uma heterotopia dentro do conceito colocado por Foucault (2013), lida como uma utopia localizada, ou seja, um contraespaço em que, mesmo tangível, a sua existência é totalmente outra aos espaços cotidianos. Nesse sentido, as prisões são essencialmente heterotopias as quais o autor classifica como heterotopias de desvio. Essa categoria porta uma característica comum que é física e organizacional, que são os muros, uma barreira intencional ao mundo de fora.

A prisão, então, se consolida na história mais fora da cidade do que no ambiente urbano, constituindo uma distância não só física, mas também relacional. Assim, ela se tornou um objeto não-urbano na medida em que seus muros começaram a constituir um impeditivo para as comunicações entre as duas esferas, e sua condição heterotópica é mensurada não apenas a partir das relações sociais, ou dos fins aos quais se é obrigado a integrá-las, mas também posta em relação à cidade. A essência do espaço prisional se define enquanto um meio não-urbano e reformista.

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Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, São Paulo. Foto de Gustavo Basso, licença CC BY 2.0

A disparidade da cidade em relação à realidade da pena

Ainda, a prisão – e todo o aparato jurídico – é dotada de um grande capital simbólico, de modo que se torna inimaginável a dissociação entre crime e punição (DAVIS, 2019). A punição é tomada como único modo de justiça e estabelece uma relação causal com o crime. Ademais, é permeada pela noção de vingança, cabendo aqui estabelecer um paralelo entre a sociedade punitiva, seus preceitos morais e a relação simbólica entre crime e tabu.

A mídia exerce papel significativo no entendimento geral da prisão como uma instituição primordial. Angela Davis (2019) argumenta que, a fim de justificar a construção de mais prisões nos Estados Unidos da década de 1980, as autoridades em conjunto com a mídia se valeram de um projeto de perpetuação do sentimento do crime incontrolável e crescente nas cidades, resultando em mais minutos dedicados especialmente a exibição de crimes nos telejornais e mais programas ficcionais que abordassem o tema, como também é notável na realidade brasileira.

A prisão, como Foucault (1997) também conceitua, se trata de uma Instituição Total. Isto é: um local onde o indivíduo passa todas as horas de seu dia e no qual ele atua em diferentes situações cotidianas como residência e trabalho, onde um determinado corpo social em situação semelhante – ativamente privados de estar em contato com o resto da sociedade por considerável período de tempo –, vive sob fortes regimentos os quais são formalmente administrados.

Uma vez que a pena de prisão tem como objetivo a ressocialização do indivíduo, teoricamente o tempo em que ele permanece fora do contato social seria destinado à apreensão das regras sociais (leis, direitos e deveres). Porém, a consciência e o comportamento do presidiário são afetados drasticamente a cada minuto passado no atual sistema prisional. Em situações de longas durações, os traços psicológicos dos detentos são quase totalmente deturpados. Isso se dá pelo fato de que uma Instituição Total não é capaz de condicionar relações sociais semelhantes à vida em liberdade – e nem almeja ser.

O cotidiano de um presídio é pautado pela restrição e a violência – podendo esta ser simbólica, psicológica ou física – oriunda dos diversos atores sociais que compõem esse ambiente. Assim, é incoerente esperar a assimilação das regras pelo indivíduo em um ambiente onde as dinâmicas sociais, das quais ele foi excluído, se reproduzem artificialmente. O que acontece, de fato, é que a maioria dos presos não consegue escapar desse ciclo cotidiano das violências.

Essa grande maioria é integrante, dadas as características racistas e classistas do Sistema Penal, de comunidades mais pobres e marginalizadas da sociedade. Cabe aqui questionar se este padrão de ressocialização delineado, sem qualquer programa de reinserção, é realmente efetivo. Alessandro Baratta (2014), em sua obra Criminologia Crítica do Direito Penal, explica que grande parte da exclusão das camadas mais baixas surge em conjunto com as determinações de crime, geralmente estipuladas por uma classe dominante.

A pública e notória superlotação dos presídios nunca demonstrou o declínio da criminalidade na história do país. Dada a não correlação entre aprisionamento e crime, é evidente que as soluções para o problema encontrariam muito mais eficácia   em uma revisão dos conceitos de crime – sobretudo no que tangencia ao controle moral da liberdade individual de cada cidadão, como o uso de drogas. 

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Governador Eduardo Leite (RS) visita Cadeia Pública de Porto Alegre. Crédito: Itamar Aguiar/Palácio Piratini, licença CC BY-NC

Em um cenário mundial, as taxas de homicídio têm caído, com exceção dos países com grande desigualdade social. Mas, concomitantemente, as corporações continuam a movimentar grandes quantias de dinheiro para manutenção e permanência das prisões, como se vê nos Estados Unidos. Ou seja, é uma equação que não procede se olharmos pelo prisma intuitivo que nos diz que menos crime é igual a menos encarceramento.

No Brasil, em 2017, foram gastos no sistema carcerário R$15,8 bilhões e, como resultado neste mesmo ano, a média de presos mortos dentro das prisões suplantou a média de presos que obtiveram liberdade. E isto não vem sem impactos nas contas públicas. O valor que cada preso representa – nas instâncias privadas e nas públicas – alcança uma quantia que claramente não reflete as condições nas quais essa população se encontra. Assim,é nítido que a pena prisional como é hoje não se adequa às necessidades da realidade brasileira.

Crises urbanas, soluções abolicionistas

Assim, o Sistema Penal é o objeto central das relações de liberdade, e, portanto, da cidade. O encarceramento, por sua vez, é aqui questionado por ser parte essencial do sistema racista no qual se apoiam as relações sociais. Ao falarmos de Abolicionismo Penal não falamos meramente de um substituto à prisão; ele coloca questões sobre segurança pública que questionam o próprio modus operandi da produção de cidade contemporânea a partir das forças hegemônicas. Considerando o Sistema Penal e as respostas punitivas como um conjunto de relações múltiplas, não há maneira de imaginar apenas uma solução que trate de sanar o problema do encarceramento.

Quando se propõem medidas socioeducativas e reparativas que não a pena de prisão, se faz necessário pensar em como lidar com os problemas que a atual gestão de segurança pública ignora, tais como o enfrentamento da miséria e da desigualdade social. Disso, a relação entre a função social da arquitetura com as pautas abolicionistas constitui-se evidente. 

Não só a prisão consiste em uma crise social, mas sua permanência determina uma crise urbana insuperável. Os erros urbanos que há tanto tempo no campo da arquitetura vêm apontando só adquirem solidez na produção da cidade pelo fato de que cidade e poder ainda somatizam-se em lucro.

Em um plano futuro, especula-se que a substituição da pena de prisão abrirá margem para mudanças significativas no corpo social. Acarretará, principalmente, em uma reorganização justa do território, como no enfrentamento das carências sociais que são colocadas como pauta da segurança pública. Pensar no acesso democrático à cidade só faz sentido em uma sociedade que não segrega coercitivamente indivíduos de seu convívio. Pensar em um futuro abolicionista, então, desponta como ferramenta significativa para a maioria das provocações que o campo da arquitetura vem conduzindo à constituição das cidades, fazendo sobressair as incongruências que sustentam históricas exclusões.

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Este ensaio é fruto das discussões e da carta-manifesto de mesmo título desenvolvida para disciplina de Estúdio Vertical na Associação Escola da Cidade ao longo do primeiro semestre de 2020. Com a orientação de André Vainer, o tema provocativo para o semestre intitulava-se “Projetos para resistir ao fim do mundo”.

Referências bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2019.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.
Global Prison Trends 2018. Londres: Penal Reform International, 2018. Anual.
MADEIRO, Carlos. Superlotadas, prisões no Brasil gastam R$ 15,8 bilhões ao ano, diz TCU. UOL, Maceió, 17 de set. 2019.

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Sobre este autor
Cita: Nara Albiero e Pedro Flosi Trama. "Releitura crítica do espaço prisional sob a ótica abolicionista" 16 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/979143/releitura-critica-do-espaco-prisional-sob-a-otica-abolicionista> ISSN 0719-8906

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